Leitura do Livro “O Filho de Mil Homens” de Valter Hugo Mãe


“Talvez tivesse percebido que usava de honestidade consigo mesma pela primeira vez em muitos anos. Disse: estou sozinha. E repetiu: estou sozinha. Desatou a falar como se não suportasse mais a boca fechada. Era uma mulher carregada de ausências e silêncios.” (MÃE, 2012, p. 40)

Livro O Filho de Mil Homens de Valter Hugo Mãe.

Olá, leitores. Hoje, apresento minha leitura do livro O Filho de Mil Homens do autor Valter Hugo Mãe. Confesso que foi o meu primeiro contato com a escrita de Mãe e fiquei encantada com sua linguagem profunda e libertadora ao navegar neste mar tão poético da capacidade transformadora do amor.

Crisóstomo é um pescador que identifica uma incompletude dentro de seu universo interior causada pela falta de amar em sua vida. Porém, o homem não se estagna em sua dificuldade, ele assume “... a tristeza para reclamar a esperança” (MÃE, 2012, p. 10). Vai, então, à procura de um filho.

Camilo, rapaz que também sofre de faltas particulares e que é órfão de uma anã – mulher a qual sofria brutamente preconceitos sociais por causa de seu tamanho –, entra na vida de Crisóstomo e conquista lugar no coração do cidadão esperançoso.

Isaura, mulher enjeitada, lida com a solidão e a dura crítica da família e da sociedade por atitudes tomadas quando jovem. Conhece Antonino – homem “maricas” vítima social por sua afetividade –, Crisóstomo, Camilo e Mininha, pessoas que impulsionam Isaura a enxergar o universo que a cerca de uma maneira diferente.

Mininha perde sua mãe em um infeliz casamento, por consequência, cura meio coração de Matilde – mãe de Antonino – ao ser adotada por esta. As duas fortificam-se juntas.

Para um mergulho mais eficiente nas páginas desta obra, é importante observar a forma como o narrador expõe os personagens. Segundo Igor Leite (p. 4-5) “... o romance retrata seus personagens pelos aspectos psicológicos e emocionais”, isto é, no enredo, o narrador constrói os personagens a partir do sentimento de ausência e solidão que existe no íntimo desses indivíduos. Como também, o desenho do espaço que os circunda, na narrativa, intensifica a caracterização interior e não física deles. Para exemplificar, perceba o seguinte fragmento da obra de Mãe (2012, p.12):

“Da porta aberta viam-se a areia da praia e a água livre do mar. A casa assentava numas madeiras fortes que pareciam árvores robustas a nascer e que, ao invés de uma frondosa copa, tinham em conjunto umas paredes intensamente azuis com janelas a mostrar cortinas brancas atrás dos vidros. (...) Era uma casa que não queria estar sozinha.”(apud LEITE, p. 5, grifo do autor) 

Também, observe o modo que o narrador traça Camilo:

Os seus olhos tinham um precipício. E ele estava quase a cair olhos adentro, no precipício de tamanho infinito escavado para dentro de si mesmo. Um rapaz carregado de ausências e silêncios. Seguia na traineira quase com a promessa de quem podia chorar. Para dentro do rapaz pequeno era um sem fim e pouco do que continha lhe servia para a felicidade. Para dentro do rapaz o rapaz caía.” (MÃE, 2012, p. 11, grifo nosso)

Dessa forma, a manifestação dos sentimentos desses seres que compõem a história convida o leitor a seguir os passos por eles dados, que cruzam a dor e o viver de cada um. Sente-se, desse modo, o singular dos personagens.

Assim, as circunstâncias são conectadas durante todo o processo temporal da narrativa, de modo a manifestar o quanto a vida é permeada de ausências e tristezas. Sim, são seres que carregam a solidão em suas particularidades. A história pessoal de cada um constitui-se de um passado, o qual porta momentos de perdas marcadas na memória: “O doutor pensava o contrário. Pensava que o passado tinha pernas longas e corria, sim, e muito, como um obstinado a marcar a sua presença, a sua herança. O passado é uma herança de que não se pode abdicar, disse o doutor.” (MÃE, 2012, p. 43-44)

Embora a tristeza exista, pode-se recomeçar. O verbo reinventar é o norte para trilhar o caminho da felicidade, da aceitação, do respeito e principalmente do amor. Os personagens descobrem esse belo trajeto e, unidos, alcançam o objetivo de amar e de se completarem. Todos perderam algo, seja uma pessoa seja sua própria alegria; mas ganharam significativamente uns aos outros. A aceitação traz felicidade. O amor transforma e irradia o mundo. A união resulta no cuidado e respeito mútuo: 

“Tinha de ser uma festa, talvez fosse mesmo uma festa, porque sobre as dores de cada um se celebravam de algum modo as partilhas, a disponibilidade cada vez mais consciente da amizade. Estavam à mesa carregados de passado, mas alguém fora capaz de tornar o presente num momento intenso que nenhum dos convidados quereria perder. Naquele instante, nenhum dos convidados quereria ser outra pessoa. O Crisóstomo pensava nisso, em como acontece a qualquer um, num certo instante, não querer trocar de lugar com rei ou rainha nenhuns de reino nenhum do planeta.” (MÃE, 2012, p. 118)

Além de que: “Ser o que se pode é a felicidade. Pensou nisto a Isaura. Não adianta sonhar com o que é feito apenas de fantasia e querer aspirar ao impossível. A felicidade é a aceitação do que se é e se pode ser.” (MÃE, 2012, p. 118)

É belo participar da ressignificação de vida edificada pelos personagens. Ao recomeçarem, mudam o seu próprio mundo e a relação com as pessoas. É um novo olhar para si e para o próximo. Eles percebem – também nós, leitores, somos convidados a notar – que o viver consiste nas diversas situações do dia a dia, nas várias ocasiões em que as pessoas atravessam o contexto uma das outras. O mundo é uma sequência de fatos, aprendizados, amadurecimentos e cuidados. O indivíduo nasce na/da sociedade, ele é um ser social que está exposto aos preconceitos e estigmas; porém, ele pode amar e encontrar sua alegria:

“... todos nascemos filhos de mil pais e de mais mil mães, e a solidão é sobretudo a incapacidade de ver qualquer pessoa como nos pertencendo, para que nos pertença de verdade e se gere um cuidado mútuo. Como se os nossos mil pais e mais as nossas mil mães coincidissem em parte, como se fôssemos por aí irmãos, irmãos uns dos outros. Somos o resultado de tanta gente, de tanta história, tão grandes sonhos que vão passando de pessoa a pessoa, que nunca estaremos sós.” (MÃE, 2012, p. 131)

Nessa perspectiva, Mãe faz com que toquemos as feridas profundas dos personagens. Posso dizer apenas dos personagens? Não! Também tocamos as feridas da própria natureza social. Existimos para o próximo, para o amor unificador; mas, por vezes, a hostilidade e a ignorância matam o laço amigo, o laço familiar (lembrando que somos filhos de mil homens!). No entanto, Crisóstomo, Camilo, Isaura etc estimulam a pensarmos em um mundo melhor, a mudarmos o nosso mundo. Eles conseguiram.  Temos capacidade para alcançarmos igualmente. Podemos enfrentar os machucados da alma e contagiar o mundo com alegria e amor. Somos capazes de buscar e abrir a porta da felicidade, a qual tem a união por cadeado e o amor por chave. Logo, trilhemos, conectados, à procura de amar e ser feliz.

REFERÊNCIAS 

Leite, Igor Augusto. A Tessitura Narrativa de O Filho de Mil Homens, de Valter Hugo Mãe. Disponível em: https://www.assis.unesp.br/Home/ensino/pos-graduacao/letras/leite-igor-augusto---a-tessitura-narrativa-de-o-filho-ok.pdf. Acesso em: 17/12/2020.

MÃE, Valter Hugo. O Filho de Mil Homens. São Paulo: Cosac Naify, 2012.



Confira, também, minha leitura sobre o livro "A Elegância do Ouriço" de Muriel Barbery: Leitura do Livro "A Elegância do Ouriço" de Muriel Barbery (kissyapibid.blogspot.com)

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