Leitura do Livro “O Filho de Mil Homens” de Valter Hugo Mãe
“Da porta aberta viam-se a areia da praia e a água livre do mar. A casa assentava numas madeiras fortes que pareciam árvores robustas a nascer e que, ao invés de uma frondosa copa, tinham em conjunto umas paredes intensamente azuis com janelas a mostrar cortinas brancas atrás dos vidros. (...) Era uma casa que não queria estar sozinha.”(apud LEITE, p. 5, grifo do autor)
“Os seus olhos tinham um precipício. E ele estava quase a cair olhos adentro, no precipício de tamanho infinito escavado para dentro de si mesmo. Um rapaz carregado de ausências e silêncios. Seguia na traineira quase com a promessa de quem podia chorar. Para dentro do rapaz pequeno era um sem fim e pouco do que continha lhe servia para a felicidade. Para dentro do rapaz o rapaz caía.” (MÃE, 2012, p. 11, grifo nosso)
Assim, as circunstâncias são conectadas durante todo o processo temporal da narrativa, de modo a manifestar o quanto a vida é permeada de ausências e tristezas. Sim, são seres que carregam a solidão em suas particularidades. A história pessoal de cada um constitui-se de um passado, o qual porta momentos de perdas marcadas na memória: “O doutor pensava o contrário. Pensava que o passado tinha pernas longas e corria, sim, e muito, como um obstinado a marcar a sua presença, a sua herança. O passado é uma herança de que não se pode abdicar, disse o doutor.” (MÃE, 2012, p. 43-44)
Embora a tristeza exista, pode-se recomeçar. O verbo reinventar é o norte para trilhar o caminho da felicidade, da aceitação, do respeito e principalmente do amor. Os personagens descobrem esse belo trajeto e, unidos, alcançam o objetivo de amar e de se completarem. Todos perderam algo, seja uma pessoa seja sua própria alegria; mas ganharam significativamente uns aos outros. A aceitação traz felicidade. O amor transforma e irradia o mundo. A união resulta no cuidado e respeito mútuo:
“Tinha de ser uma festa, talvez fosse mesmo uma festa, porque sobre as dores de cada um se celebravam de algum modo as partilhas, a disponibilidade cada vez mais consciente da amizade. Estavam à mesa carregados de passado, mas alguém fora capaz de tornar o presente num momento intenso que nenhum dos convidados quereria perder. Naquele instante, nenhum dos convidados quereria ser outra pessoa. O Crisóstomo pensava nisso, em como acontece a qualquer um, num certo instante, não querer trocar de lugar com rei ou rainha nenhuns de reino nenhum do planeta.” (MÃE, 2012, p. 118)
É belo participar da ressignificação de vida edificada pelos personagens. Ao recomeçarem, mudam o seu próprio mundo e a relação com as pessoas. É um novo olhar para si e para o próximo. Eles percebem – também nós, leitores, somos convidados a notar – que o viver consiste nas diversas situações do dia a dia, nas várias ocasiões em que as pessoas atravessam o contexto uma das outras. O mundo é uma sequência de fatos, aprendizados, amadurecimentos e cuidados. O indivíduo nasce na/da sociedade, ele é um ser social que está exposto aos preconceitos e estigmas; porém, ele pode amar e encontrar sua alegria:
“... todos nascemos filhos de mil pais e de mais mil mães, e a solidão é
sobretudo a incapacidade de ver qualquer pessoa como nos pertencendo, para que
nos pertença de verdade e se gere um cuidado mútuo. Como se os nossos mil pais
e mais as nossas mil mães coincidissem em parte, como se fôssemos por aí
irmãos, irmãos uns dos outros. Somos o resultado de tanta gente, de tanta
história, tão grandes sonhos que vão passando de pessoa a pessoa, que nunca
estaremos sós.” (MÃE, 2012, p. 131)
Leite, Igor Augusto. A Tessitura Narrativa de O Filho de Mil Homens, de Valter Hugo Mãe. Disponível em: https://www.assis.unesp.br/Home/ensino/pos-graduacao/letras/leite-igor-augusto---a-tessitura-narrativa-de-o-filho-ok.pdf. Acesso em: 17/12/2020.
Que lindo!! Fiquei até com vontade de ler o livro.
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